Ao longo do tempo, a capacidade humana de digerir produtos lácteos andou lado a lado com a evolução da pecuária leiteira
O leite é um alimento importante na nossa dieta. Rico em proteínas, minerais e vitaminas, traz diversos benefícios para a saúde, como formação da estrutura óssea, ganho de massa muscular e melhoria da qualidade da visão, entre outros. Seu consumo está fortemente associado ao processo evolutivo do homem: presume-se que o leite faça parte da nossa alimentação há pelo menos 10.000 anos, quando a agricultura e a criação de animais começaram a se desenvolver.
Contudo, uma pequena parcela da população tem intolerância ao leite. Hoje, sabe-se que o problema deve-se a condições genéticas, sendo uma delas a intolerância à lactose.
A intolerância pode ocorrer de duas formas, a primária e a congênita, que têm bases genéticas distintas. A primária, que é a mais comum das duas, é consequência da diminuição gradual da capacidade do organismo de produzir lactase, a enzima responsável pela digestão da lactose. Nesse quadro, os indivíduos tornam-se, em geral, intolerantes ao leite após a primeira infância.
Já a intolerância congênita à lactose, muito rara, ocorre devido a mutações que levam a um quadro de ausência completa de lactase no organismo desde o nascimento. Isso faz com que a pessoa seja incapaz de digerir a lactose desde os primeiros meses de vida.
Em sua forma primária, a intolerância à lactose é determinada pela presença ou ausência de um polimorfismo genético que implica, respectivamente, na persistência ou não persistência da produção da lactase pelo organismo na vida adulta. É importante salientar que a forma original dos genes para essa característica nos humanos é a de não persistência da lactase. A forma alternativa surgiu e passou a ter frequência prevalente com o advento da pecuária leiteira.
Estudos mostram que os descendentes dos antigos povos do norte da Europa, típicos produtores e consumidores de produtos lácteos, têm uma frequência do gene para a tolerância à lactose significativamente mais alta do que os povos africanos e asiáticos, originários de locais em que a pecuária leiteira foi insípida ao longo do tempo.
Corroboram essa abordagem o fato de que, em algumas tribos africanas ancestrais em que a pecuária leiteira é uma tradição, a frequência do gene de tolerância à lactose é similar à do padrão europeu. Isso reitera que a persistência da lactase tem uma forte correlação com a produção leiteira histórica da população.
Esse é um exemplo clássico de coevolução gene-cultura: a produção de laticínios tornou propício o desenvolvimento de um diferencial seletivo para os indivíduos que podiam se beneficiar nutricionalmente do consumo de leite quando chegassem à idade adulta.
Felizmente, ao longo do tempo, a versão do gene para persistência da lactase acabou prevalecendo na maioria das populações. A indústria de alimentos oferece leite e derivados sem a presença da lactose, uma forma de essas pessoas poderem usufruir também dos benefícios desse importante alimento.
*Luiz Josahkian é zootecnista, professor de melhoramento genético e superintendente técnico da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ)
Fonte: Globo Rural