Profissionalização de queijeiros no país e aposta em técnicas que têm passado de uma geração à outra fazem produção nacional se sofisticar e receber prêmios internacionais
Ivair Oliveira trabalhava no comércio quando decidiu, há 24 anos, dedicar-se à produção de queijo em São Roque de Minas, na região da Serra da Canastra, em Minas Gerais. Algum tempo depois, dificuldades financeiras e problemas de saúde o fizeram parar a atividade para ajudar na confecção da esposa, Lúcia Oliveira. Ele não desistiu, porém, e em 2019, quase duas décadas após a estreia, conquistou duas medalhas no Mondial du Fromage et des Produits Laitiers, o Mundial de Queijos e Laticínios, concurso francês que ocorre a cada dois anos e é um dos mais importantes do segmento no mundo.
“A nossa maior preocupação é com a qualidade”, diz Ivair, membro da quinta geração de uma família de queijeiros, firme na decisão de continuar a produzir somente 20 peças por dia de um de seus carros-chefe. “Já me ofereceram muito dinheiro para ser sócio do negócio e dobrar a produção, mas a gente continua com o pé no chão.”
Produção brasileira ganha status
A experiência bem-sucedida do produtor mineiro ajuda a ilustrar um fenômeno que ganhou corpo neste século: a metamorfose da indústria brasileira de queijos. Em escala virtualmente inédita até o início dos anos 2000, o produto nacional ficou mais sofisticado, e a multiplicação de prêmios internacionais atesta essa mudança de status.
O queijo apareceu no Brasil por obra dos portugueses, e, por centenas de anos, as receitas do produto foram basicamente as que imigrantes, de diferentes nacionalidades, trouxeram de seus países de origem. Os descendentes desses queijeiros mantinham a produção seguindo o que aprendiam com seus pais e avós.
A produção industrial surgiu no século XX. Já no século XXI, seguindo uma tendência mundial, grandes chefs passaram a revisitar produtos artesanais para, com mais informação e repertório, elaborar pratos autorais.
O resgate dos queijos artesanais deu fôlego novo ao segmento. Os produtores aliaram tecnologia à tradição das receitas de família para lançar produtos de qualidade internacional. Muitos dos queijos dessa fase de ebulição receberam algumas das premiações mais importantes do mundo, como o Mondial du Fromage e o World Cheese Awards (WCA).
Guilherme Ferreira, fundador da Estância Capim Canastra, de São Roque de Minas (MG), foi o primeiro a conquistar uma premiação internacional com seu queijo. Em 2015, ele recebeu medalha de prata no Mondial du Fromage de Tours, na categoria Massa Prensada Não Cozida de Leite Cru de Vaca. Ferreira passou a estimular outros produtores a participar de concursos. A ideia era tornar a produção brasileira mais conhecida no exterior.
Um dos produtores que toparam a sugestão do campeão pioneiro foi justamente Ivair. Em sua estreia no concurso francês, o mineiro recebeu medalha superouro com o queijo Canastra do Ivair – Produção da Tarde, e bronze com o Canastra do Ivair – Produção da Manhã. Obteve as mesmas premiações em 2021, e, em 2023, o queijo vespertino recebeu medalha de prata.
Depois de quase abandonar a produção de queijos de vez, Ivair decidiu retornar à atividade em 2012, depois de participar de um curso de empreendedorismo do Sebrae MG. Ele tomou um empréstimo e juntou suas economias para investir na estrutura e na formalização da queijaria.
“Comecei fazendo o queijo canastra de casca amarela. Em 2015, quando vieram as chuvas, apareceram os fungos que deixam a casca do queijo branca. No início, eu lavava a casca, mas o Guilherme Capim deu a ideia de produzir o queijo casca florida, com o fungo”, conta Ivair.
A casca esbranquiçada, às vezes um pouco rosada, é resultado da ação do fungo Penicillium, que deixa o queijo com sabor marcante e textura mais macia. A produção logo atraiu a atenção de compradores de São Paulo.
Também em 2015, Ivair resolveu testar a produção de queijo com leite ordenhado da vaca na parte da tarde. O processo de produção é o mesmo, usando leite, coalho, pingo (fermento lácteo obtido do soro da produção do dia anterior) e sal. Mas o resultado é diferente.
“O leite da ordenha da manhã tem de 3,5% a 4% de teor de gordura. Já na ordenha da tarde, depois que a vaca se alimentou, a produção de leite é menor, mas tem de 5% a 7% de teor de gordura”, relata Ivair. O resultado é um queijo mais macio e untuoso e com um sabor mais forte do que o que se faz com o leite ordenhado pela manhã. “O prêmio nos deu visibilidade e acabou incentivando outros produtores a também produzirem à tarde”, conta.
Conhecimento de gerações
O conhecimento empírico, que está nas famílias de queijeiros há gerações, e a troca de informações sobre novas técnicas de produção formam a base desse novo momento dos queijos brasileiros. Na Fazenda Irmãos Faria, em São Roque de Minas, a produção de queijo começou com a bisavó Melvira. Atualmente, a administração da Queijaria Irmãos Faria está nas mãos de Rildo de Oliveira Faria, sua esposa, Maria, e os filhos, Rafaela e Leonardo. O irmão mais velho, Fernando, ajuda nos fins de semana e feriados.
A produção, de cerca de 40 peças por dia, segue a receita tradicional do queijo canastra, com leite cru, coalho, pingo e sal. O queijo é maturado por 20 ou 30 dias. A casca, de tom amarelado, é lavada todos os dias em água.
“É essencial ter um leite de qualidade. Sem isso, não tem como fazer um queijo bom”, afirma Rildo. Maria comenta que outro diferencial é a salga mais suave. O Queijo Canastra Irmãos Faria foi reconhecido com a medalha super ouro na terceira edição do Mundial do Queijo do Brasil, em 2024.
“Nós ficamos muito surpresos com o prêmio. O nosso foi o único queijo canastra que chegou à final do concurso. A gente não estava esperando”, conta Rafaela. Após a premiação, ela acrescenta, a queijaria passou a vender para todo o país. “Hoje, falta queijo para atender toda a demanda”, comemora.
Também personagens do novo momento dos queijos nacionais, Rogério e Larissa Ferreira integram a quarta geração de um clã de queijeiros em Piumhi (MG). O casal, dono da Barão da Canastra, começou produzindo queijo canastra, com maturação de 21 dias para o queijo capa branca e de 60 a 90 dias no caso dos queijos de casca florida. Em 2022, a dupla lançou um parmesão, com fermentos e coalhos da Itália e que é maturado por nove meses.
“Nossa primeira medalha foi com o queijo de casca florida. Todo o mofo que tem ali é natural, vem da pastagem, da água, tem todo o terroir da Canastra”, afirma Larissa. O mofo branco da casca preserva a umidade no interior da peça, observa. “Com 90 dias de maturação ele fica adocicado, lembra um pouco um Grana Padano”, diz a queijeira. O queijo Barão da Canastra de casca florida e maturação de 90 dias recebeu medalha de ouro no Mondial du Fromage em 2023 e prata no WCA do mesmo ano.
Os queijos brasileiros de prestígio internacional têm surgido em diferentes partes do país, mas é Minas Gerais, uma espécie de sinônimo de queijo de qualidade no imaginário nacional, que domina esse movimento. No Estado, as regiões da Serra da Canastra, do Cerrado Mineiro e de Araxá são algumas das mais importantes desse fenômeno.
No distrito de Quilombo, em Sabinópolis, na região do Serro — outro dos polos de queijos de qualidade em Minas Gerais —, Ivacy Pires dos Santos uniu dois produtos tradicionais para dar origem a uma inovação premiada: um queijo minas artesanal maturado na cachaça mineira. A iguaria recebeu a medalha superouro no Mondial du Fromage de 2021, entre outras premiações.
A criação partiu da curiosidade de Ivacy. “Sabinópolis é uma terra conhecida como a terra do queijo e da cachaça. Fui tentando até dar certo”, conta o produtor, integrante da terceira geração de uma família de queijeiros. Ele segue a receita clássica do queijo minas artesanal, que leva leite cru, pingo, coalho e sal, mas adota uma maturação mais longa, de pelo menos 60 dias. “O queijo é pincelado na cachaça por várias vezes. Depois de embalado, ele vai ficar curtindo na embalagem”, diz o queijeiro. A versão que recebeu prêmio foi maturada por oito meses. A produção é de 30 peças por dia.
Outra representante da região do Serro, no centro-nordeste de Minas Gerais, Christiane Brandão, dona do Queijo Maria Nunes, preserva as técnicas de produção do queijo minas artesanal que sua família utiliza há cinco gerações. Ela graduou-se em sistemas de informação, fez pós-graduação em gestão e trabalhou em Belo Horizonte e São Paulo. Em 2012, no entanto, com a morte do pai, Christiane voltou para a fazenda Maria Nunes, em Santo Antônio do Itambé (MG), e passou a comandar a produção de queijo.
Ela começou produzindo queijo fresco e fez cursos para se especializar na área. Hoje, a empresária produz queijo minas artesanal maturado, de casca lisa e casca florida — em média, a produção é de 17 peças por dia. O queijo Maria Nunes, com maturação de 50 dias, recebeu medalha de ouro no concurso Mondial du Fromage em 2023, entre outros prêmios. “É muito importante que o nosso modo de fazer seja reconhecido. Ele já está mais do que enraizado na nossa vida, na nossa tradição, na nossa família”, afirma Christiane.
Fonte: Globo Rural